Comecei a juntar as peças ao ler “A Origem da Humanidade” de Richard Leakey. Eu cursava Ciências Sociais e este livro me voltou à mente diversas vezes. Nele, o membro da notável família Leakey discorre sobre a evolução do ser humano da sua origem aos dias atuais. Claro, se você é criacionista e tem fé dogmática nisso, está convidado a ir ler algo menos herético ante que se irrite logo. Bom, o texto contém uma série de hipóteses reveladoras sobre a espécie humana, e é muito interessante colocar nossa trajetória numa esteira de milhões de anos ao invés de meses ou anos. Estamos acostumados a olhar pouco para o passado, principalmente para o passado remoto, como se apenas o passado recente tivesse realmente importância para a nossa história recente. As implicações morais para a minha vida contidas neste texto são surpreendentes.
Na parte final do livro, Leakey fala sobre o impacto para o ser humano no aumento do seu cérebro. Foi como ler um daqueles bons livros de mistério em que no final acontece uma bela reviravolta em que tudo se revela e faz sentido de forma harmoniosa e inteligente. A questão com o cérebro do ser humano não está relacionada diretamente com a capacidade superior de raciocínio. A grande questão é o parto. O parto do ser humano é muito difícil por causa do tamanho do cérebro. Se o cérebro humano estivesse plenamente desenvolvido antes de nascer, o parto jamais seria viável, pois ele não poderia passar pélvis devido ao seu tamanho. O resultado é que o feto humano nasce muito imaturo. Levam longos anos até ele atingir a plena maturidade. Veja que os mamíferos em geral, se tornam adulto (ou melhor atingem a capacidade de reproduzir) em poucos meses. O ser humano leva cerca de 14 anos até atingir a puberdade e ser capaz de se reproduzir.
O resultado dessa maturidade tardia é que a prole humana permanece sob a tutela dos pais por longos anos. Nestes período algo incrível acontece que faz toda a diferença. Conhecimentos, hábitos e costumes aprendidos pelos pais são transmitidos para os filhos. Ao longo do tempo, esse longo período de contato, de transmissão de conhecimento, constitui um patrimônio para aquele grupo de hominídeos, sua cultura. E a partir daí, a evolução da espécie humana passa a ser regida muito mais pela evolução da sua cultura do que por alterações morfológicas no seu corpo. Um hominídeo que sobreviva só sem o contato com outros da sua espécie, não pode ser considerado um ser humano. Não anda em pé, não fala, não tem hábitos como os nossos. Não aprendeu nada com seus pares, não possui uma cultura como a nossa.
Diferentes culturas fizeram com que o ser humano desenvolvesse diferentes habilidades, diferentes sociedades, diferentes valores. É claro que essa noção de ética universal que engloba toda a humanidade é balela quando você olha o ser humanos como um todo. Então essa baboseira de que o homem nasce bom ou mal, de que ele é corrupto, ou que ele é egoísta e coisa e tal, não faz muito sentido. Depende da cultura em que ele vive. Uma sociedade competitiva, que valoriza o consumo e a mais valia obviamente produz humanos de um tipo completamente diferente de um que cresceu numa pacata ilha isolada desse universo. O fato que é a nossa cultura, apesar de mudar muito vagarosamente, é fruto nosso, dos seres humanos. Somos nós que a construímos. Não é algo dado, imutável e pré-determinado. Como dizia o velho barbudo…
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”
O resultado disso é que está tudo em nossas mãos. Não precisamos de intervenção divina ou nos lamentar eternamente. Precisamos criar melhores filhos para construir um futuro melhor. Filhos que sejam agentes transformadores da nossa cultura, que criem seus filhos melhores ainda . Não se muda uma cultura da noite para o dia, mesmo em momentos de ruptura ela leva varias décadas para mudar de forma que a maior parte da sociedade absorva essa mudança. Veja por exemplo o advento do anticoncepcional. Foi um momento de ruptura com profundas transformações na nossa sociedade, onde a mulher deixa de ser uma máquina de gerar e criar seres humanos para se tornar uma pessoa capaz de ter escolhas, de ter uma carreira, estudar, casar, ter filhos… ou não! Já faz mais de 40 anos que o anticoncepcional surgiu e ainda estamos por vê-lo alcançar toda a sociedade, notavelmente ainda encontramos setores conservadores que reagem a qualquer tipo de anticoncepcional, até mesmo ao uso do preservativo. Mas aos poucos, vemos esta tendência se tornando cada vez mais hegemônica. A cultura está sempre em transformação, não é algo estático. O ser humano existe há milhões de anos. Só conhecemos uma pequena fração da sua jornada pela terra. Existem culturas mais solidárias, mais corruptas, mais violentas, mais competitivas, mais consumistas, com mais diversidade, com mais tolerância, com mais pessoas se suicidando. A questão é: qual ser humano queremos construir afinal?
Uma qualidade inerente ao ser humano, um instinto primário que ele traz consigo me faz acreditar que é possível construir algo melhor do que temos hoje. De que não é assim e sempre foi assim em todo lugar e há qualquer tempo. A capacidade do ser humano de amar a si mesmo e ao próximo faz com que isso seja possível. Praticamente toda religião, seja ela monoteísta, politeísta, oriental, ocidental, etc prega o amor ao próximo. É por isso que mesmo em dias em que tanta gente se preocupa em atacar, denigrir, combater e eliminar uns aos outros, apenas com o otimismo de que vale à pena acreditar no ser humano, podemos construir algo melhor. Vale à pena perdoar e resistir aos que se esquecem do amor ao próximo e desejam saciar suas frustrações combatendo um mal que sequer sabem se existe, aqueles que sonham em comprar um novo bem na esperança de conquistar a felicidade anunciada por um comercial de TV.
Que o nosso amor ao próximo seja forte, otimista e vibrante, contagioso. Que possamos construir novos alicerces. E se um dia eu parar de acreditar nisso, vou até o bar mais próximo, começo a beber e não saio nunca mais dali.