Canção do Sal

Há uns 20 anos atrás eu dava aula de alfabetização de adultos numa creche cravada dentro de uma favela perto de onde eu morava. Uma vez por semana eu ia lá dar aula. Provavelmente eu estava longe de ser um bom alfabetizador, mesmo nas aulas de matemática eu não era lá essas coisas. Tem gente que acha que dar aula é algo simples, que qualquer um faz, mas não é beeem assim. Mesmo assim, uma das situações mais emocionantes que eu já passei em sala de aula aconteceu lá.

A Vilma era uma mulher batalhadora, ia de bicicleta para o trabalho e fazia faxina uma empresa de alimentação. Ela foi se alfabetizar depois que seu filho que tinha se formado em engenharia dizia que ela era burra, pois nem sabia ler e escrever. Eu achei essa história bem triste e fiquei com ela na cabeça por dias até que eu lembrei da música do Milton Nascimento, chamada “Canção do Sal”. Depois eu coloco a música aí embaixo pra você ouvir, na mesma versão da Elis Regina que eu usei para levar na sala de aula. Mas em resumo uma das estrofes diz assim:

Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir

E ao chegar em casa encontrar a família a sorrir

Filho vir da escola problema maior é o de estudar

Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar

Imprimi cópias da letra, arranjei um aparelho de som e fui eu lá para a minha aula. Ouvimos a música, trabalhamos as palavras chave, a leitura da letra, etc. Tive que explicar o que era uma salina, como se extraia o sal da água do mar, pois eles nunca tinham ouvido falar sobre isso. E de onde vinha a expressão de “estar no sal”. Sobre o quão sofrida é a vida de quem trabalha no sal.

E no final falamos sobre o trabalho duro que os pais fazem para que os filhos possam ter uma vida melhor, que possam estudar e ter uma vida digna. E claro, olhei pra Vilma e disse abertamente na sala de aula que ela não era burra. Pois uma pessoa burra jamais teria se empenhado tanto para oferecer a oportunidade que ela não teve para o próprio filho. Que o amor aos filhos, o sacrifício de todos os dias não pode tirar o orgulho deles de ter feito o melhor com o que tiveram. E se hoje eles estão estudando numa sala de aula de uma creche improvisada para adultos depois de um dia duro de trabalho, isso deveria ser motivo de maior orgulho ainda. Me curvei para a turma e disse que eu ali, tenho muito orgulho de todos eles e era uma honra para mim que tive a oportunidade de estudar, poder dividir um pouco do que eu aprendi com eles.

E essa turma chorou e se abraçou como nunca vi numa sala de aula na minha vida. Nunca me esqueci da Vilma, que pra mim é a cara do Brasil que eu acredito. Risonha, batalhadora e sofrida também. As Vilmas são as nossas verdadeiras heroínas anônimas do dia-a-dia.

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