Na minha adolescência eu fiquei sabendo que um dos maiores especialistas em Karl Marx no Brasil é um cara chamado Delfim Neto. Essa informação ficou gravada e quando fui estudar ciências sociais descobri que isso faz todo o sentido. Passei a ler um bocado de Marx também. Mas não só ele. Li a maioria dos clássicos da sociologia, antropologia e ciência política com posições bastante distintas. E aprendi muito. Você descobre com o tempo que não basta estudar os autores que pensam como você. É preciso entender as pessoas que pensam diferente também. A sociedade é feita de pessoas com ideias muito diferentes das suas, você precisa entende-las também se tem a intenção de entender um pouco sobre como o mundo funciona.
Gostei muito da “Metáfora da Caixa de Bombons” do Sr. Clarion de Laffalot, mas vou contar uma história real que aconteceu quando eu ainda estava no que hoje se chama de ensino médio. Eu estava conversando com uma amiga que é fiel devota da religião A. E por mais que eu respeite a religião A (assim com a B, C, D,…. Z!) eu tenho lá minhas críticas também. E no meio da conversa fui cutucando minha amiga quanto a sua crença nos dogmas da religião A sem muito sucesso. Ela acreditava piamente em todas as proposições até que eu peguei ela na curva! Eu era muito amigo do namorado dela, e me vali de informação privilegiada. Perguntei se ela realmente acreditava em sexo apenas após o casamento. E ela acabou confessando que não concordava apenas com esse ponto, mas todos os outros permaneciam firmemente válidos. Questionei se havia alguma possibilidade de algum outro dogma estar equivocado. Ela foi resoluta e disse que não. Isso para mim é de uma contradição imperdoável. Se um item pode estar errado, não seria plausível que algum outro também pudesse ser questionado? Você não precisa comprar o pacote todo.
Por outro lado, vejo muitas pessoas tratarem religião como uma vitamina. Você pega um pouco daqui e dali e mistura tudo e monta seu próprio sistema crenças. E qual o problema disso? Nenhum. Claro que me preocupo com as pessoas que não se aprofundam e apenas saem repetindo meia dúzia de frases feitas sem saber sobre o que estão falando. Mas isso independe de religião, credo, ideologia. A educação em si não é um valor na nossa sociedade. Ninguém acha que precisa estudar para saber. A nossa curta visão do mundo que nos certa parece ser tudo o que precisamos saber sobre o universo. Os minhões de anos em que a humanidade passou acumulando conhecimento não parece valer muito. O que dizer então dos milhares de anos em que o conhecimento deu um salto gigantesco após o advento da escrita. O marco que separa a história da pré-história parece não valer para muitos. E os livros parecem não ter muita importância. Não é à toa a sensação de que voltamos à pré-história. Não se trata mais de comparar argumentos de esquerda ou direita. Trata-se de torcer por um time de futebol. A cor da sua camiseta, a cor da sua pele ou o gênero da pessoa você abraça, determina se você vai viver ou morrer ao se deparar com as nossas tribos pré-históricas que vem se multiplicando por aí. E isso não é um exagero.
Nada parece abalar a fé das pessoas que se prendem firmemente em seus dogmas. E como diz o Prof. Leandro Karnal, combater uma religião só a torna mais poderosa. A única forma de enfraquece-la é fazê-la irrelevante, cair no esquecimento. Ou como dizemos no mundo do Software Livre: “NÃO ALIMENTE OS TROLLS“. Repito esta frase incansavelmente estes dias. Não que eu não me irrite profundamente com as aberrações vociferadas por turbas que não são nem de direita nem de esquerda, nem da religião A ou B, são de pessoas ignorantes mesmo. Que não tem coragem de checar uma fonte antes de sair divulgando informações falsas e absurdas. Que ridicularizam filósofos brilhantes com influência secular sem sequer saber sobre o que se está falando. Aprendam com o Sr. Delfim Neto… conheçam a obra de quem você vai criticar. Se não tem uma opinião bem embasada sobre o assunto, procure ler mais e falar menos.
São tempos sombrios para a razão e o debate de ideias. Para Marx, ideologia seria um conjunto de ideias que procura explicar uma realidade. Toda ideologia seria falha, pois não é possível observar a realidade em sua totalidade, é sempre um ponto de vista. Mas para chamar algo de ideologia, é preciso haver coerência e razão. Uma ideologia tem de parar de pé, ou não sobrevive ao tempo. Apesar do Sr. Ferris Bueller dizer que os “ismos” são maus, eles são uma forma consistente de ler o mundo em que vivemos. As ideologias são importantes. Mesmo que você não concorde 100% com nenhuma, elas ao menos nos proporcionam uma leitura do mundo em bases claras e factíveis.
Ao contrário, a religião não pressupões o uso da razão e coerência. Pressupõe a fé. Mesmo assim, ainda é preciso estudar um bocado para fazer uma interpretação coerente do sistema de crenças e valores que uma religião propõe. Muitos teólogos estudam realmente duro. Sem isso, as ideias se perdem e em nome da fé se pode afirmar qualquer coisas que se deseje numa leitura rada de um ou outro texto sagrado.
O que vemos hoje é um vazio imenso apoiado sobre meios de comunicação difusos e confusos. Uma histeria coletiva que parece mesmo sedenta de sangue, como torcidas organizadas que acabaram de perder o campeonato. Agora, se você ficar indignado com as baboseiras que houve, só vai inflamar ainda mais a torcida que está doida para encontrar confusão no caminho.
Não basta ser intelectual e ler Nietzsche agora. É preciso ser racional e solidário, paciente inclusive. Muito paciente. É muito fácil ser engolido num momento como esses, se expor de forma extremada, entrar para a torcida A ou B, sem perceber que está jogando fora toda a humanidade que lhe resta. Resista, sorria, dê bom dia para o vizinho. Não discuta se isso não for lhe levar a nada. Agora os gestos valem muito mais do que as palavras…. Haverá tempo para todos nós refletirmos em breve, como fez a Escola de Frankfurt após a II Guerra Mundial. Então recolheremos os cacos após esse maremoto de estupides e construiremos novas idéias, novos horizontes e quem sabe fé numa ideologia em que valha à pena lutar por.
Sábias palavras!