A chuva castigou a cidade e meus planos. Aquela imensidão de ruas, avenidas, casas e prédios pareciam imóveis diante da chuva. Naquela noite eu fui até um bar na cidade vizinha, depois de uma hora que a chuva havia finalmente parado e o céu deixou de se tornar escuro e denso. Nas ruas não vi pontos de alagamentos como eu via há 30 anos em dias assim. Lembro-me de um dos meus melhores amigos da adolescência, o Erasmo. Ele morava numa casa ao lado do Córrego das Águas espraiadas, onde hoje fica a Av. Jornalista Roberto Marinho, que canalizou o córrego, e asfaltou a casa dele. Eles viviam numa casa de usucapião que alagava toda vez que uma chuva mais forte vinha. Uma vez, logo depois que a chuva parou, eu corri até a casa dele… ele estava de longe, vendo as margens do córrego inundando as casas ao redor, sendo a primeira delas a sua própria casa, olhando desolado, sem sequer ir até lá acudir a família. Encontrei e fui falar com ele. Ele me disse apenas… “É toda vez assim, todas às vezes a mesma coisa”. Antes das obras da avenida nova começarem, após décadas de um projeto engavetado se tornar realidade, a “favela do buraco quente” foi finalmente desalojada, e o Erasmo perdeu a casa própria. A indenização da prefeitura, mas cobria alguns meses de aluguel. A família dele se mudou, e eu perdi o contato com o Erasmo para sempre.
Desta vez não havia nenhum alagamento. Havia escuridão e árvores tombadas no caminho. Semáforos desligados, grande parte da cidade no escuro, mesmo dias depois. Árvores enormes repousando sobre o asfalto. Comércios fechados, poucos carros ousaram vagar pelas ruas naquela noite. Isso foi numa sexta-feira. No sábado, o mesmo cenário desolador. Domingo a cidade ainda parecia com suas feridas abertas por todos os lados. Não fui pedalar como eu queria. Não fui à Bienal. Eu queria estar em movimento, arejar. Mas me vi encontrando ruas escuras, árvores caídas e pessoas quebradas pelo caminho.
Andar sozinho por ruas desconhecidas e sombrias, seguindo o GPS, mesmo seguro dentro do meu carro, me trouxe uma sensação de desconforto, uma sensação solidão. Uma sensação que me assombrou pela vida toda. Quantos anos da minha vida adulta eu levei para deitar num divã e falar em voz alta: “o meu maior medo, é o medo da solidão”. O sonho que se repetiu inúmeras vezes quando criança, de assistir ao próprio funeral, de longe, e ver apenas os pais no meu enterro, a sensação de que não importa o que eu faça, eu viverei e morrerei sozinho. E eu fui uma criança que viveu intensamente a solidão. Tive pouquíssimos amigos, como estar num mundo onde eu não me encaixo. Aos 16 anos eu desisti. Eu passei dias e dias fingindo que ia para a escola e passava o dia deitado na cama ouvindo Pink Floyd, me lamentando por não ser amado. Eu me isolei de tudo e de todos. Me fechei no universo do meu quarto, por uma quantidade de tempo que não consigo contabilizar. Meus pais não sabiam de nada. Ninguém sentia a minha falta, eu não fazia a menor diferença no mundo, a não ser para os meus pais. A vida não fazia muito sentido.
Eu repeti de ano por faltas naquele ano, e comecei novamente o segundo ano do ensino médio. Disposto a tentar novamente, fazer novos amigos. Há poucas semanas o meu terapeuta me perguntou se faria diferença, para mim, voltar a trabalhar presencialmente, ver gente todos os dias no escritório, se eu me sentiria menos solitário. Não, provavelmente não faria muita diferença. Conheci pessoas incríveis trabalhando com informática, pessoas com as quais tenho orgulho de conversar até hoje. No entanto… em boa parte do tempo, eu me senti bastante solitário. Não basta estar rodeado de pessoas, é preciso ter conexão com elas. E ao refazer o segundo ano do ensino médio, mesmo começando o ano colocando um sorriso no rosto, me esforçando para ser agradável e fazer novos amigos, eu rapidamente me isolei. É como se novamente aquele não fosse o meu lugar.
Eis que em 1992, algo muito significativo mudou. Um presidente impopular gerou uma onda de manifestações nas ruas. Aos meus 17 anos eu resolvi ir por conta própria, em uma, duas, três manifestações. Eu via as pessoas na escola alheios a tudo aquilo. Foi quando eu resolvi escrever sobre o que estava acontecendo. Escrever e publicar nos murais da escola. Levou quase uma semana de insistência junto a diversas instâncias burocráticas até desistirem de me dissuadir daquilo. Eu publiquei orgulhoso e assinei embaixo. Nada mudou… e eu continuei indo nas manifestações. Até que uma tarde, haveria uma manifestação no paço municipal, logo ali, do lado da escola. E eu comecei a bater na porta das salas de aula, interrompendo o professor e convidando as pessoas para irem na manifestação. Havia um senso de urgência. De estar fazendo o que precisava ser feito… e reparei pessoas desconhecidas fazendo o mesmo… batendo na porta das salas e convidando os alunos para a manifestação. Eram alunos do período noturno, eu realmente não conhecia nenhum deles. E nessa parceira meio que instintiva, um deles perguntou o meu nome… e aí veio a cara de espanto: “Você é o Fábio Telles? Que publicou aquela carta nos murais da escola? Cara, nós estávamos lhe procurando…”. E aí meus caros, desse dia em diante a vida mudou, fez sentido e o mundo se abriu para mim. Amigos que tenho há mais de 30 anos, foram forjados naqueles dias. A primeira namorada, o primeiro porre, as viagens, essa vontade de mudar o mundo e viver tudo intensamente. Eu não era a única pessoa estranha no mundo. Haviam mais deles! E eu estava no lugar certo, na hora certa.
O ensino médio passou, os dias de glória foram ficando para trás, e um novo sopro de vida surgiu quando comecei a dar aula em Diadema. Uma equipe engajada, um projeto pedagógico incrível, um espaço de trabalho privilegiado, um momento em que eu trabalhava empolgado, abandonei a faculdade de engenharia e fui cursar Ciências Sociais. Participei de outros projetos, fiz outras coisas interessantes. Mas aquele momento também ficou para trás. Saí da educação, vim para a área de informática e me engajei no movimento de Software Livre. Palestras, congressos e esse blog aqui surgiram nessa época. No começo dos anos 2000, os blogs estavam em alta, os temas ligados ao Software Livre animavam congressos e bares.
Olhando para trás, a vida pareceu uma montanha-russa, com momentos de euforia e momentos de obscuridade. Momentos de luzes e momentos em que me senti quebrado, como as árvores caídas nas ruas. Solitário como as ruas sem luzes, disfuncional como o trânsito sem semáforos. Essa necessidade constante de ser amado, de ser lido, de ser validado pelo outro, por aquilo que eu escrevo, por aquilo que eu faço, me levou a muitos lugares, muitos artigos, muitos eventos organizados, muitas pessoas que ajudei pelo caminho. No entanto, a solidão continua lá dentro, ecoando e rugindo, quando o trabalho acaba, quando acordo sem sono de madrugada, quando me perco de mim mesmo. A tal solitude, parece uma piada sem graça, que dá vontade de esculachar, como eu faço com a turma da positividade tóxica. Mas em algum ponto eles tem razão…
Achar essa força para se levantar, se colocar em movimento, sem um empurrão de fora. Se esforçar para se alimentar direito, fazer exercícios, ler, fazer planos, se dedicar aos meus próprios projetos. Não sei de onde essa força vem, mas é a única coisa que consigo fazer para preencher o vazio dentro de mim. Eu sinto falta de pessoas, de conexões reais, de ouvir e ser ouvido. Mas até quando, acender o farol alto, e fugir da escuridão em busca de um fio de companhia que me tire desta solidão, não é fugir de mim mesmo. O quanto eu preciso usar melhor o meu tempo só e o quanto eu devo procurar outras pessoas para socializar? O quanto eu preciso desse abraço mais apertado do outro e o quanto eu preciso me orgulhar de mim mesmo, de me empenhar em me cuidar de verdade?
Aos poucos, as árvores serão removidas, os semáforos voltarão a funcionar, a cidade voltará a fluir no seu caos cotidiano. Eu voltei para casa, eu falei e ouvi pessoas. Vi meu filho minha mãe. Eu continuo me apaixonando e vivendo. Estou em movimento, estou tentando. E daqui apouco… vou para a academia, mesmo tendo dormido pouco esta noite.
Espero que estejam todos bem, eu estou tentando. Estou mesmo.
O vazio não é preenchivel, aceitar a condição humana nos ajuda a viver experiências que nos aliviam temporariamente. Amar o vazio acalma a solidão.